A questão do homem sobre si mesmo é a questão dos homens sobre a humanidade: quem somos? Por que existimos? Por que buscamos o sentido das coisas?
Há diversas situações da nossa vida em que a pergunta sobre o ser humano e o sentido de sua existência pode aparecer. A forma da pergunta eo tipo de resposta podem variar.
A pergunta pode ser formulada em particular, ou seja, cada um pode perguntar a si mesmo quem é de fato e qual o objetivo de sua vida. Mas também pode ser formulada em termos gerais. Nesse caso, a existência da humanidade é um desafio que se busca investigar, e aí nos incluímos como partes de um todo maior.
Alguma vez você já fez alguma das perguntas que seguem ou ouviu alguém fazê-las?
-Por que existo?
-O que estamos fazendo neste mundo?
-Para que viver?
-Qual o sentido da vida?
O texto a seguir apresenta, com bom humor e inteligência, o despertar da consciência para essas questões:
Irmãos
-De vez em quando em penso neles...
-Quem?
-Nos espermatozóides...
-De vez em quando você pensa nos seus espermatozóides?
-Nos meus, não. Nos do meu pai
-Você esta bêbado.
- Na noite que eu fui concebido – suponho que tenha sido uma noite – eu era um entre milhões de espermatozóides. Mas só eu cheguei ao óvulo da mamãe. Ou seriam bilhões?
-Acho que é óvulo mesmo.
-Não. Os espermatozóides. São milhões ou bilhões?
-Ahn. Não sei.
-Não importa. Milhões, bilhões. Só eu me criei, entende? Por acaso. Isto é o mais assombroso. A gratuidade da coisa. Havia milhões, bilhões de espermatozóides junto comigo e só eu, entende? Só eu fecundei o óvulo. Não é assombroso?
-É
-Você acha mesmo?
-Acho.
-Podia ser qualquer um, mas fui eu. Por acaso.
-Amendoim?
-Hein? Obrigado. Agora me diga. Por que eu? A gratuidade da coisa. Só eu fecundei o óvulo, virei feto, nasci me criei e estou aqui, neste bar, de gravata, bebendo. Agora me diga, o que é isso?
-É como você diz. A gratuidade da coisa.
-Não, não. Isto que eu estou bebendo.
-É, ahn, uíque.
-Uíque. Pois então. Aí está.
-Ó Moacyr, vê outro aqui. O rapaz está precisando.
-Um brinde!
-Um brinde.
-A eles!
-Quem?
-Aos espermatozóides que não chegaram ao óvulo de mamãe. Aos companheiros. Aos bravos que cumpriram sua missão e não vieram para comemorar. Aos que perderam a viagem. Aos meus irmãos!
-Aos meus irmãos!
-Meus irmãos. Você não estava lá.
-Aos meus irmãos!
-Aos milhões, bilhões qu esse sacrificam para que eu pudesse viver.
-Salve.
-Agora me diga uma coisa.
-Duas. Digo duas.
-Cada espermatozóides é uma pessoa diferente, certo? Quer dizer. Em outras palavras. Se outro espermatozóide tivesse completado a viagem, não seria eu aqui. Ou seria?
-Depende.
-Não seria. Seria outra pessoa. Outro nariz, outras idéias. Talvez até torcesse pelo América. Uma mulher! Podia ser uma mulher. Certo?
-Não vamos exagerar...
-Então, imagina a seguinte. Pense bem, Amendoim.
-Amendoim. Estou pensando nele. Amendoim.
-Não. Me passe o amendoim e pense no seguinte. Se entre os espermatozóides que me acompanharam, e que não chegaram ao óvulo, estava a cara que ia descobrir a cura do câncer? Hein? Hein?
-Certo.
--Mas, em vez dele, eu é que cheguei. Por acaso. Ou podia ser uma mulher. Uma soprano de fama internacional. Em vez disso, deu eu. Veja a minha responsabilidade.
-Acho que você está sendo radical.
-Não. Imagine se em vez de espermatozóide que se transformou no Jânio Quadros, tivesse dado outro. Em honra do Brasil seria completamente diferente! É ou não é?
-Mais ou menos.
-Pois então. Eu me sinto culpado, entende? Acho que eu devia, sei lá. Ter feito mais da minha vida. Em honra a eles. Estou aqui representando milhões, bilhões de espermatozóides, cada um uma pessoa em potencial. E o que é que eu fiz da minha vida?
-E se fosse um bandido?
-Como?
--Se, em vez de você, o espermatozóide que tivesse dado certo fosse um assassino, um mau-caráter. Não quero falar dos espermatozóides do seu pai, mas num grupo de milhões sempre tem uma ovelha estragada. Uma maçã negra. Estatisticamente.
-Você acha mesmo?
-Acho.
-Sei lá.
-E outra coisa. O que passou, passou. Não pense mais nisso.
-Mas eu penso. De vez em quando eu penso. Os meus irmãos que não nasceram. Que nomes teriam? Eduardo, Gilson, Amaury, Jessica..
-Marcos Antônio...
-Marcos Antônio... Imagine, um deles podia ser o ponta-direita que o Brasil precisava em 74. Eu me sinto culpado. Você não se sente culpado?
-Bom, eu tenho 11 irmãos.
-Aí é diferente.
-Por quê?
-Não sei. Só sei que entre milhões, bilhões de espermatozóides, todos com os mesmos direitos, só eu me criei. Por acaso. Agora me diga, o que é isso?
-É uíque.
-Não. É a gratuidade da coisa.
-Não sei...
-Você está bêbado.
(Luis Fernando Veríssimo. o analista de Bagé. p. 19-22)
Quando nos deparamos com o tipo de questionamento presente no texto de Luis Fernando Veríssimo, não estamos mais no terreno científico, e sim filosófico. Mesmo levando em consideração o que a ciência – a biologia, a sociologia, a psicologia – tem a dizer sobre a realidade humana, é necessário olhar para essa realidade com os outros olhos.
É que as ciências se ocupam de uma parte especifica da realidade. Portanto, por mais extras que sejam suas respostas, são sempre parciais e não respondem a todas as nossas perguntas. A ciência conhece muito algumas partes da realidade, mas não o sentido global dela.
Se estamos interessados em aprender o sentido mais amplo da realidade, precisamos aprender a questionar o que já sabemos. E levar tudo em conta e formular perguntas básicas.
A filosofia, da forma como buscamos praticá-las, ocupa-se das questões fundamentais que os seres humanos se colocam quando buscam apreender o sentido do todo. Mas ela também formula suas próprias questões. Por exemplo: se nos, seres humanos, nos indagamos quem somos, a filosofia também quer saber por que fazemos essas perguntas.